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Lígia Bergamaschi Botta, arquiteta e urbanista | Foto: Divulgação
Edição 218

Lígia Maria Bergamaschi Botta, arquiteta e urbanista: ‘Porto Alegre está à deriva’

Profunda estudiosa da infraestrutura de Porto Alegre, Lígia viralizou recentemente por causa de um áudio no qual explica as razões que levaram a capital gaúcha a ser tomada pelas águas

Branca Nunes
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A arquiteta e urbanista Lígia Maria Bergamaschi Botta se debruça sobre a infraestrutura de Porto Alegre desde os anos 1970, quando participou da elaboração de um dos mais completos planos diretores da capital gaúcha. Durante seus quase 50 anos de profissão, a maior parte deles estudando o planejamento urbano da cidade, sempre buscou privilegiar a qualidade de vida dos cidadãos.

Poucos dias depois de Porto Alegre ficar submersa, Lígia enviou um áudio para uma sobrinha que havia lhe pedido explicações sobre as causas daquele desastre. A mensagem foi enviada a cinco amigos, que a compartilharam com outros cinco, que a mandaram para mais cinco, e, assim, a gravação chegou a centenas de milhares de ouvintes, todos encantados com a clareza e simplicidade com que Lígia abordou os fatos. Recentemente, esse material foi transformado num vídeo, que já contabiliza quase 240 mil visualizações no YouTube.

YouTube video

Nascida em Estrela, cidade localizada a pouco mais de 100 quilômetros de Porto Alegre, Lígia morou em Erechim, o Fundo e Rio Grande, antes de se mudar para a capital, aos 14 anos de idade. “Acabei virando uma porto-alegrense por opção e por paixão”, diz. Casada com o engenheiro civil Décio Carlos Botta, especialista em saneamento, ela elaborou projetos como o do Parque Saint’Hilaire, em Porto Alegre, o do Gasoduto Uruguaiana x Região Metropolitana, e de hospitais em Florianópolis, ville e Chapecó.

Nesta entrevista, Lígia explica qual foi a receita que deixou debaixo d’água uma das cidades mais importantes do país: uma mistura de chuva intensa, densificação demográfica exacerbada, infraestrutura obsoleta e falta de planejamento urbano. “Porto Alegre está à deriva”, resume. “Nas pesquisas que eu e o meu marido fizemos, encontramos atualizações até dez, 12 anos atrás. Não conseguimos nenhum dado mais recente.” Das 23 casas de bomba existentes na cidade, muito poucas estavam funcionando quando a cidade inundou.

Confira os principais trechos da entrevista.

A senhora participou de alguns planos diretores de Porto Alegre. O que eles previam?

Participei de vários. Quando entrei na prefeitura, o plano diretor se restringia a uma pequena área, densamente ocupada. Por decreto, houve uma série de extensões, até que, em 1979, fizemos um novo plano muito consistente, com uma proposta bem interessante, bastante humana. O mote eram as cidades dentro da cidade. Propúnhamos uma descentralização comercial, com três grandes polos comerciais, o principal deles sendo o centro, que já existia. Outro ficava na zona norte, e um terceiro, mais ao sul. Gravitando em torno desses três polos principais haveria polos de menor porte, de forma que as pessoas pudessem ter o às suas atividades e necessidades próximo de suas casas. Esses polos seriam ligados pelas vias principais, chamadas corredores de serviço. Também era permitido comércio nessas vias, assim como prestação de serviços e pequenas indústrias. A cidade de Porto Alegre tem o formato de um “V”, sendo que o centro fica na ponta desse “V”. As vias convergem para esse ponto e não têm grande capacidade de circulação, então ficam muito congestionadas. Nosso objetivo era inverter essa lógica e fazer com que as pessoas parassem de viver em torno do centro. Distribuiríamos a movimentação, deixando o centro oficial para a parte istrativa e as atividades que só essa área possuía, como o Palácio do Governo, a Assembleia Legislativa e a Catedral.

Esse plano diretor ainda está em vigor?

Ele foi concretizado em 1979 e vingou por cerca de 20 anos. Quando eu deixei a secretaria, meio intempestivamente, estavam começando a modificá-lo. Nessa época, eu ocupava cargos mais importantes e propus um aperfeiçoamento do plano original, limitando os prédios maiores aos centros de bairro e centros comerciais. Mas havia outra corrente que defendia a densificação demográfica da cidade, com ocupações mais intensas. Eles queriam quebrar essa visão de centros de bairro e permitir os grandes prédios em todos os lugares. Deixei a secretaria, porque me recusei a participar dessa proposta. Saí na metade de uma reunião e pedi demissão. Preferi perder o último reajuste na minha aposentadoria e ficar com a minha consciência tranquila a avalizar um plano com o qual eu não concordava.

As inundações que aconteceram agora eram uma tragédia anunciada">“O tormento da família de um condenado pelo 8/1”

9 comentários
  1. Elias José de Souza
    Elias José de Souza

    O que não faltam são projeto de infrtaestrutura para as grandes cidade, o maior problema é coloca-los em pratica, só ficamos sabendo dele depois que acontece uma tragedia.

  2. Esmeralda kiefer
    Esmeralda kiefer

    Obrigada, Oeste!! Obrigada, arq. Lígia!! Excelentes informarções técnicas, sem maquiagem de políticos$$ e interesseiros$$. Vivi as mudanças de Porto Alegre, ao longo das décadas. O caos foi escancarado. O sentimento é de imensa tristeza e revolta. Tomara que aconteçam boas mudanças depois desta tragédia!!

  3. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Excelente entrevista. Uma aula.

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O planejamento urbano é negligenciado na grande maioria das cidades brasileiras, por isso a desordem e catástrofes como esta. Espero ao menos que sirva de lição para as jovens cidades que ainda estão se desenvolvendo, como no Mato Grosso e outras. Porque as que já estão estabelecidas é de difícil conserto, vai ser só ”enxugar gelo”.

  5. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Enquanto isso, algumas criaturas ficam tirando fotos com cestas básicas e de militares ando pacotes de mão em mão. Figuras inúteis diante de tanto trabalho técnico necessário e urgente para salvar a população do R.G do Sul.

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    E a abertura das comportas de uma só vez não se fala, em setembro foi aberta três comportas de umas duas só vez, uma tromba d’água arrastou casas e o que tinha pela frente. Alexandre Garcia foi falar queriam predeê-lo. Agora tem vídeos mostrando tromba d’água chegando. Aquilo não é de chuva, pode chover o que for que não chega daquele jeito

  7. Francisca Lenita de Menezes Aragao
    Francisca Lenita de Menezes Aragao

    De mais de 2 décadas para cá o trabalho de planejamento é desenvolvimento urbano vem sendo ocupado nas prefeituras por critérios políticos, o que isola os profissionais por mérito, criando corrente de pelegos.

  8. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    Muito bem Drª. Lígia Maria BERGAMASCHI Botta. É sempre assim quando há o interesse político, empresarial. O Técnico é responsável para “achar” as soluções depois do problema acontecido, da enchente ter matado, sufocado e desabrigado milhares de pessoas. Por que não seguiram as orientações iniciais do alemães? E depois da equipe Técnica encabeçada por ti?
    A gente sabe o porquê. O caos, infelizmente, “interessa” e rende mais do que a solução definitiva dos problemas urbanos.
    É assim em todas as áreas: saneamento, drenagem, vias, viadutos, enfim, tudo!
    Parabéns por sua postura decente, honesta, correta que só os honrados têm!
    Obrigado.
    Como seu colega e de seu Esposo, sinto-me representado e igualmente triste e consternado com as perdas humanas e dos animais. É preciso sim muito mais que uma reconstrução simples!
    Forças aos Gaúchos. A Ti meu muito obrigado.

  9. Selma Rocha
    Selma Rocha

    O atual desgoverno federal e o governador não quer solucionar o problema do RS, se quisessem ouviriam TÉCNICOS especializados como essa arquiteta da matéria, a impressão que dá, é que td é um plano pra destruir o agronegócio, sei lá, apenas conjecturas e nada mais.

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