Seja civil, seja criminal, corra o processo em longínqua vara de primeira instância ou no Supremo Tribunal Federal, jamais poderá existir nenhuma mínima hipótese excepcional ao seguinte princípio geral do Direito Processual: o intransponível e fatal princípio da imparcialidade do juiz natural.
Qualquer suspeição minimamente fundamentada da autoridade julgadora é, sem nenhuma margem para interpretações, circunstância incompatível com o citado princípio, que é considerado, por todos os juristas (os verdadeiros, convém ressaltar nestas circunstâncias infestadas por cornucópias que se autointitulam “juristas”… devem viver de “juros”), o mais fundamental dentre os fundamentais princípios processuais, Pois, considerando os escopos sociais e políticos do Direito, bem como do compromisso jurídico e jurisdicional com a moral e a ética, sua extraordinária relevância dispensa qualquer juridiquês.
Intuitivo até para crianças e analfabetos, o princípio da imparcialidade é básico e comum a todos os sistemas jurídicos dos Estados de Direito democráticos. Apesar de intuitivo, ele traz, em si, seriíssimas conotações éticas, sociais e políticas, operando, nesse sentido, como verdadeiro sustentáculo legitimador de todo o sistema processual.
O juiz, para que possa julgar, deve estar acima e com equidistância das partes, sob pena de invalidar toda a relação processual. Logo, nada é jurídico, uma vez que não pode haver justiça, se existir alguma lógica na suspeita da imparcialidade do julgador. A partir dela, tudo que partir do suspeito é, para o Direito, imprestável. Não pode haver exceção, já que a Constituição proíbe juízos e tribunais de exceção (art. 5º, inc. XXXVII).

Diz a Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal”.
A qualidade de terceiro totalmente estranho ao conflito que vai julgar é essencial à condição de juiz, que pode ser definido como o sujeito imparcial do processo, o indivíduo de superior virtude (exigida legalmente e cercada de cuidados constitucionais) que é investido de autoridade para dirimir um problema à luz do Direito. Sem imparcialidade insuspeita, é o próprio juiz que se coloca para fora do Direito quando insiste em conhecer e julgar uma ação. Fora do Direito é impossível, portanto, que ele aplique o Direito.
Acrescente-se que todos os poderes de qualquer juiz são, na verdade, poderes-deveres. Logo, nenhum juiz, sem nenhuma exceção, tem ou poderá alegar poderes nem para se defender nem para defender o Estado, mas apenas para prestar um serviço público ao público (inclusive ao acusado criminal) de acordo com o ordenamento jurídico.
A afronta ao princípio da imparcialidade é tão grave que, prescreve a Lei do Impeachment, se qualquer ministro do STF, sabendo-se suspeito por qualquer elemento que o vincule pessoalmente a um caso, vier a julgá-lo, cometerá crime de responsabilidade (Lei nº 1.079/1950, art. 39, item 2).
A despeito da suficiência do bom senso, a legislação brasileira exemplifica as hipóteses nas quais um juiz pode ser considerado suspeito. Assim faz o artigo 145 do Código de Processo Civil, bem como os artigos 252 e 254 do Código de Processo Penal. Quanto aos artigos do Código de Processo Penal, o rótulo técnico das hipóteses elencadas no artigo 252 é o do “impedimento”, ao o que os casos prescritos pelos incisos do artigo 254 são apresentados como “suspeição”. Todavia, para efeito de análise do termo “suspeito” empregado pela Lei nº 1.079/1950 no crime de responsabilidade de ministro do STF, a diferenciação entre suspeição e impedimento é irrelevante, pois tanto o impedimento quanto a suspeição referem-se ao mesmo bem jurídico que o Direito visa a garantir em última instância: a imparcialidade do julgador.
Em poucas palavras: um ministro do STF suspeito é aquele que, processualmente impedido ou suspeito (tanto faz), julga. O desvalor social e jurídico da imparcialidade de um ministro do STF é tamanho que, julgando apesar da suspeitada parcialidade, comete crime de responsabilidade e, assim, deve ser “impichado”.

O horror a essa hipótese sempre foi destacado pelo maior dos juristas brasileiros, Pontes de Miranda:
“O homem em quem o Estado depositou a confiança de julgar traiu-o, traindo a sua função ele, que, no seu papel, deve ser indiferente aos grandes e aos pequenos e, até, acostumar-se a ver que o ato de justiça exige dupla coragem, a de ferir a grandes, que estão em faltas, e a pequenos, que também as cometem.” (Tratado das Ações, edição atualizada por Nelson Nery Junior e Georges Abboud, São Paulo, RT, 2016, t. IV, p. 719)
Esse verdadeiro asco à parcialidade do juiz é impresso no Direito brasileiro desde o período colonial. Independente, uma vez que as Ordenações do Reino continuaram, aqui, vigentes por mais quase cem anos. O rechaço à parcialidade do juiz evidencia-se na lição de Emmanuellis Gonçalves da Sylva, que, em seu Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliæ, de 1731, sintetiza o conceito de juiz imparcial como aquele que julga sem o sentimento de gratidão, ambição ou ódio:
“Idem sententia lata per gratiam, seu ambitionem, id est, quod index volens parti gratificari pro consequenda aliqua dignitate, vel officio, seu ob amicitiam, vel odium litigatorum, aut quod precibus devictus sententiam tulit, ipso iure teneret.” (Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliæ, Portugal, 1731, t. III, p. 136)
Fica demonstrado, portanto, que todo absurdo jurídico levado a cabo no que tange à famigerada trama de golpe bolsonarista, todo absurdo que aniquila a qualidade “de Direito” do Estado brasileiro — tornado, assim, “de exceção” ao Direito — somente é possível pela imprestabilidade do Senado, freio e contrapeso ao Supremo Tribunal Federal.
Nosso guardião último da Justiça é o Senado Federal.
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Excelente e didático artigo.
Pavinatto nos apresenta uma magnifica aula de direito.
E pensar que chegamos a este nível de acontecimentos por omissão do Senado.
Nas eleições do ano que com renovação de 2/3 da casa temos a obrigação de mudar este jogo.
Pavinatto, que tal criar mais um programa de entrevistas, já temos Piotto com negócios, breve Augusto Nunes com políticos, e você com grandes juristas plurais para conhecermos o caráter e a interpretação jurídica desses atores. Dai quem sabe vocês poderão voltar a dirigir o RODA VIVA da TV CULTURA, com o apoio do governador Tarcisio.
Primoroso este artigo do Pavinatto.
Pavinatto, parabéns, como sempre brilhante, nossa esperança!!!
Benditas redes socias e ao ex-presidente Bolsonaro, que nos impulsionou e desvendou a podridão por dentro das instituições. Desde o ano 2000 que estamos sendo governados por um presidente analfabeto, talvez que jamais existiu à frente de uma nação. Junto com outros se tornou um fantoche na busca da perpetuação no poder, pela corrupção, e engodo daqueles, como eu, que não se interessavam pela política. Seus sucessores foram na mesma trilha, talvez com um pouco mais de estudo, mas todos alinhados ao mesmo propósito. Então como esperar que um dia isso não acontecesse, que a maior corte do Brasil, sendo, desde então, indicados pela influência desse analfabeto, não se tornaria no que se tornou. Se pensarmos que o animal humano, tem em seu DNA o bem, mas também tem o mal, este está gritando mais alto neste momento. . Pavinatto, sou e sempre serei teu fã, você é o sujeito perfeito, para fazer parte da maior corte de qualquer país.
Obrigado Prof. Pavinatto por essa aula de Direito. Certos “ministros”, “juízes”, “juristas” deveriam ler esse artigo e aprender com você o que é Direito. Quanto ao Senado Federal sem nenhuma esperança de mudança. De onde menos se espera não sai nada mesmo.