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Edição 264

Bíblia & batom

A punição exagerada de manifestantes do 8 de janeiro não vai tirar as dúvidas sobre o sistema eleitoral

O presidente do Supremo, ministro Barroso, tem expressado a crença de que a Corte é querida, por sua defesa da democracia. Desde o início do governo Bolsonaro, o Supremo vem defendendo a democracia, graças à criação do “Inquérito do Fim do Mundo”, como o rotulou o ministro Marco Aurélio Mello, ex-presidente da Casa, já aposentado. Nem precisou de Ministério Público, como exige a Constituição. Foi um ato de legítima defesa contra os que, nas redes sociais, abusando da garantia constitucional pétrea de livre manifestação do pensamento, ameaçavam com palavras os ministros do Supremo. Os ofendidos, então, trataram de investigar, denunciar, processar, condenar essas vozes, a despeito da proibição de censura estabelecida na Constituição da qual ministros do Supremo são guardiões. A defesa da democracia deixou-os tão queridos que agora a FAB, além de defender o espaço aéreo brasileiro, ou a garantir o espaço dos ministros do Supremo sempre que quiserem viajar pelos ares brasileiros. Já me deu saudade de rever a bordo de voos regulares os ministros mais antigos, como Gilmar e Fux, que eu encontrava com frequência. Ficou até proibido divulgar a lista de ageiros. Apesar de pessoas públicas, servidores do público, o público pagante não pode saber nem sequer aonde vão. Mas a Corte é muito querida. 

Apesar de servidores públicos, ministros do STF agora voam com proteção da FAB e sigilo de destinos, em nome da defesa da democracia | Foto: Shutterstock

Fica ainda mais querida quando o decano, ministro Gilmar, em entrevista, diz que não faz sentido a Câmara discutir anistia. É bom lembrar que a Câmara é outro Poder. Poder político. E os Poderes, diz a Constituição, devem ser harmônicos. Os deputados discutem anistia, e o decano do Supremo afirma que isso não faz sentido. No domingo da manifestação por anistia na Avenida Paulista, o Evangelho escrito por João mostra uma cena de anistia por parte de Jesus, de uma adúltera recém-flagrada. Pela Lei Mosaica, ela deveria ser apedrejada; os fariseus provocaram Jesus, perguntando o que fazer com ela. Jesus respondeu: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Os circunstantes, então, foram sumindo. “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?”, perguntou Jesus, que havia ficado sozinho com a mulher. “Ninguém, Senhor”, ela respondeu. E Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.

O ministro Barroso já disse que não dá para não punir, porque os insatisfeitos com resultado de eleição tornarão a pecar contra o patrimônio público e as instituições. Como na Lei Mosaica: olho por olho, dente por dente. Essa posição do presidente do Supremo Tribunal ainda está no Velho Testamento; não entrou na Era Cristã, que recebeu um novo mandamento, aplicado por Jesus à adúltera. Escribas e fariseus achavam que ela deveria ser apedrejada até a morte. Mas descobriram dentro de si que não tinham moral para atirar a primeira pedra. Aqui, se a apuração da eleição fosse bem compreendida por cada eleitor, se houvesse um instrumento que garantisse ao eleitor que seu voto está computado certo; se, havendo quase empate entre candidatos, fosse possível fazer auditoria, como tentou o PSDB na reeleição de Dilma, não haveria a dúvida, a insatisfação, a catarse. A ameaça da Lei de Moisés não baniu o adultério; a punição exagerada de manifestantes do 8 de janeiro não vai tirar as dúvidas sobre o sistema eleitoral. 

Servidores do Judiciário protestam contra desigualdade salarial em carta a Luís Roberto Barroso
Barroso defende punições exemplares, mas críticos dizem que repressão não elimina dúvidas sobre o sistema eleitoral brasileiro | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Na Câmara, o presidente Hugo Motta, depois de ter afirmado que o 8 de janeiro não teve golpe, comete uma contradição ao afirmar que há assuntos mais urgentes que o projeto de anistia. O primeiro deles é dar aumento aos auxiliares de gabinete dos ministros do Supremo. É como se dissesse que não se importa com as pedras já atiradas; pessoas nos presídios, sem antecedentes criminais, que cometeram o crime de vir para Brasília se manifestar contra um resultado que não conseguiram compreender de uma eleição, estão há dois anos apartadas de suas famílias, de suas atividades, com a liberdade retirada. Foram degredadas ao grau de miseráveis, para as quais o projeto de anistia é a misericórdia. Mas é preciso salvar antes o contracheque dos gabinetes supremos.

A decisiva atualidade do Evangelho daquele domingo é que hoje os que já tiveram pecado — e foram perdoados pela anistia de 1979 — são os que estão atirando a primeira pedra quando gritam “sem anistia!”. Farisaísmo, hipocrisia. Mas tudo é amor. O Supremo é popular porque garante a democracia. A prisão para ensinar os antidemocratas é mais didática que uma anistia que vai induzi-los a pecar de novo, armados de perigosos batons e de Bíblias que ficam pregando maus exemplos de Jesus com a pecadora.

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10 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Caro Alexandre, um artigo primoroso.
    Pior que acreditar que o povo, único detentor do poder, tem amores inconfundíveis pelo STF é este mesmo STF propor aos manifestantes termo de persecução para assumirem crimes que não cometeram e ainda participar de curso de “democracia”. Cômico se não fosse trágico.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Só peço uma coisa: parem de chamar de decano, aquele velhaco do Gilmar Mendes.

  3. Zélia Vieira Woolf de Oliveira
    Zélia Vieira Woolf de Oliveira

    👍👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

  4. Wanderson Assis Campos
    Wanderson Assis Campos

    O STF, que deveria se ater ao seu papel de guardiões da Constituição, pisoteia nela todos os dias, com as suas decisões e opiniões que são contrárias à vontade popular. Brilhante análise do Alexandre Garcia.

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Exato, Alexandre. Esta gangue suprema, com “juízes” como Luis Roberto Barroso, o mediador da eleição que atua para derrotar um candidato, acha que a população num e de mágica irá esquecer o que eles fizeram no verão ado. Jamais!

  6. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Parabéns Alexandre por ser um dos poucos jornalistas e políticos que se manifestam insistentemente no sistema de auditagem dos votos. Creio que teu excelente jornalismo deveria divulgar em Portugal e na Europa a fragilidade e pouca transparência das urnas para pacificar a população eleitoral de nosso pais, que ao votar constatará que seu voto estará presente nas urnas eletrônicas e a do voto impresso, portanto possível de conferência e validação da apuração que prevalecerá com o resultado dos votos impressos apurados. Com certeza não haverá novos 8 de janeiro.

  7. José Ailton Andreatta
    José Ailton Andreatta

    Espero estar vivo para ver alguma decisão do STF QUE AGRADE O POVO BRASILEIRO

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse supremo tem que fechar não faz o seu papel de mais alta côrte de justiça, pelo contrário faz papel de uma facção criminosa burocrática com o viez comunista

  9. Luiz Carlos Fontana
    Luiz Carlos Fontana

    Este STF não tem mais razão de EXISTIR. Solução: FECHAR e ABRI-LO c eleições diretas e ser juíz de carreira.

  10. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Excelente artigo Alexandre Garcia, mestre dos mestres.

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