Ilustração: Revista Oeste/IA
Edição 265

O fiasco da alfabetização no governo Lula

Extinção da Secretaria de Alfabetização e abandono da Política Nacional de Alfabetização marcam mais um retrocesso do governo petista

O Brasil vive um colapso silencioso na alfabetização infantil. E a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem parcela considerável de responsabilidade nessa situação. Ele extinguiu, já no primeiro dia de governo, em janeiro de 2023, a Secretaria de Alfabetização (Sealf) e revogou a Política Nacional de Alfabetização (PNA). Com essas medidas, Lula desmontou a única iniciativa de base científica e técnica que o país já teve para enfrentar o analfabetismo de forma estruturada.

Desde então, os números têm falado por si. Segundo dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), apenas 49% das crianças do 2º ano estavam alfabetizadas em 2023 — percentual inferior ao registrado em 2019 (55%), antes da pandemia de covid-19. O índice atual, embora superior ao de 2021 (36%), ainda demonstra que o Brasil não conseguiu recuperar o terreno perdido com a crise sanitária. 

Em maio de 2024, o governo Lula chegou a comemorar um suposto avanço na alfabetização com base no recém-criado Indicador Criança Alfabetizada. Segundo o Ministério da Educação (MEC), 56% das crianças até o 2º ano estariam alfabetizadas em 2023. No entanto, o índice, elaborado com metodologia própria, foi duramente questionado por especialistas por falta de transparência nos cálculos e por apresentar resultados discrepantes em relação ao Saeb.

Manuel Palácios, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), argumentou que a discrepância dos números foi causada pela diferença da metodologia usada pelo Criança Alfabetizada. Segundo ele, os dados do novo indicador são mais precisos, e o Saeb é apenas uma “amostragem”. Apesar disso, o governo federal não divulgou o relatório completo dessa última avaliação. Restringiu-se à apresentação de microdados.

Foto: Pavlova Yuliia/Shutterstock

Um projeto abandonado antes de começar

Criada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019, a PNA foi a primeira política pública nacional de alfabetização baseada em evidências científicas, com fundamentos como consciência fonêmica, fluência em leitura oral, vocabulário e compreensão de textos. Sob a liderança do professor Carlos Nadalim, à frente da então Secretaria de Alfabetização, o programa visava a enfrentar tanto o analfabetismo absoluto quanto o funcional. A proposta envolvia apoio técnico, materiais, formação de professores e adesão voluntária dos entes federativos.

Mas o Brasil não teve a chance de ver os frutos dessa política. No ano seguinte à sua criação, a pandemia fechou escolas e interrompeu o calendário escolar. Os dois anos seguintes foram uma tentativa de dirimir as consequências negativas da crise. Quando as ações da PNA finalmente foram retomadas, o governo petista recém-eleito optou por sua extinção sumária — sem avaliação pública, sem debate técnico e sem oferecer uma alternativa à altura.

O substituto que não substitui

No lugar da PNA, Lula assinou um decreto que criou o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA). Trata-se de um programa que repete promessas genéricas de colaboração federativa, mas carece de metas claras, arcabouço técnico e rigor metodológico. A iniciativa recebeu o investimento de R$ 1 bilhão em sua primeira fase, com previsão de mais R$ 2 bilhões até 2026.

“Trocou-se, com base numa nota técnica de terceiro escalão do MEC, um decreto técnico por um nada”, afirmou Ilona Becskeházy, doutora em Política Educacional pela Universidade de São Paulo e ex-secretária de Educação Básica. “Um conjunto de normas que não contribui em nada para o processo de alfabetização.”

De acordo com Ilona, a destruição da Sealf e da PNA não teve justificativa técnica, apenas ideológica. “O Brasil criou uma jabuticaba não alfabetizatória”, disse. “Fomos inundados pelas ideias pseudopedagógicas de Paulo Freire e, até hoje, estamos chafurdando na lama.”

Para ela, o país sofre de uma combinação fatal: “Incompetência técnica e vontade política de manter essa incompetência”.

O CNCA está sob a Secretaria de Educação Básica (SEB), que é comandada por Kátia Schweickardt. A proposta do programa é a alfabetização até o fim do 2º ano e ações de recuperação para os anos seguintes. Enquanto isso, o Saeb mostra que a taxa de alfabetização segue abaixo dos níveis pré-pandemia — mesmo com o retorno às aulas presenciais.

Foto: Evtushkova Olga/Shutterstock

Duas políticas completamente diferentes

Ilona explica que a discussão sobre autonomia e eficácia dos formuladores de política educacional não é banal, “especialmente à luz da proposta de um Sistema Nacional de Educação que tende a limitar essa autonomia”. E nem apresenta evidências de que o novo desenho contribua para reverter o analfabetismo escolar. Foi nesse contexto que a PNA foi substituída pelo CNCA de Lula.

A diferença entre as duas propostas é profunda. Ilona explica que a PNA trazia um desenho técnico claro, centrado na implementação por adesão, e com objetivos específicos e ações definidas. O CNCA se apoia em diretrizes genéricas e conceitos vagos. O programa revogado se baseava em evidências científicas sólidas, reconhecendo seis componentes essenciais para a alfabetização, segundo o National Reading (2000):

a) Consciência fonêmica

b) Instrução fônica sistemática

c) Fluência em leitura oral

d) Desenvolvimento de vocabulário

e) Compreensão de textos

f) Produção de escrita

A PNA também detalhava políticas complementares, como currículo; materiais para alunos e modalidades especiais; formação de professores com base nas ciências cognitivas; certificação de alfabetizadores; livros de literatura adequados ao nível de literacia; formação de gestores; e instrumentos de avaliação e diagnóstico. Havia, ainda, o objetivo de antecipar a alfabetização para o 1º ano do ensino fundamental.

Já o CNCA não apresenta definição clara do que entende por alfabetização nem especifica as ações que o compõem. Seu foco recai sobre a formação de comitês, infraestrutura e insumos pedagógicos, sem explicar como tais ações resultarão em aprendizado. Traz a meta de alfabetização no 2º ano. Além disso, enfatiza desigualdades e subgrupos, sem indicar quais modificações pedagógicas seriam necessárias para garantir a alfabetização.

“A alfabetização de crianças que vêm de famílias com pouco vocabulário e poucos hábitos de leitura é muito custosa, tanto para o aluno quanto para o professor”, explica Ilona. “O erro técnico do Brasil é esquecer que, quando a criança tem pouco vocabulário, a parte mecânica do processo precisa ter mais atenção. O processo é mais chato. E, sendo mais chato, a chance de abandono é maior, tanto do professor quanto do aluno.”

‘Ler inglês é imperialismo cultural’

Ela aponta a raiz do problema: a recusa em adotar práticas validadas internacionalmente, por viés ideológico. “Não faltam referências sobre como alfabetizar”, diz. “Até países pobres alfabetizam. O Brasil não consegue porque insiste em manter aquelas vendas de animais de tração para não olhar para os lados. Vendas ideológicas. Os educadores brasileiros não leem inglês porque acham que ler inglês é imperialismo cultural.”

A especialista é enfática ao defender a PNA: “Foi um flash raro de coragem política e capacidade técnica”. Ela diz que a solução a pelo “somatório de coragem e vontade de incinerar capital político em prol do aluno que precisa ser alfabetizado com conseguir achar alguém que desenhe o programa tecnicamente direito”. 

Para Ilona, esses dois fatores aconteceram em 2019 com a “indignação” de Bolsonaro e a capacidade técnica do professor Carlos Nadalim. “Ter essas duas variáveis juntas novamente é quase impossível no Brasil”, lamenta. “Com o governo federal apontando para a direção errada, alfabetizar se torna ainda mais difícil.”

Foto: Revista Oeste/IA

Uma gestão ideológica da educação

Além da fragilidade técnica das políticas públicas, especialistas ouvidos por Oeste apontam outro entrave: o viés ideológico que permeia as decisões do Ministério da Educação. “A condução ideológica da área é o que mais dificulta o trabalho técnico”, disse um servidor da própria pasta, que atua junto à Secretaria de Educação Básica e pediu anonimato. “O decreto anterior era mais detalhado e eficiente, mas exigia mais cobrança aos professores.”

Esse servidor também expressa incômodo com a discrepância dos dados apresentados: “Não faz sentido dizer que os números da Saeb não são confiáveis e gastar milhões para financiá-lo”.

A própria escolha de Kátia Schweickardt como secretária de Educação Básica gerou questionamentos. Ela é graduada em agronomia e em ciências sociais, com mestrado e doutorado em áreas relacionadas à Amazônia e à sociologia. Ou seja, não tem formação técnica em Educação. Em entrevista ao site Metrópoles em maio de 2023, Kátia declarou que uma de suas principais preocupações no MEC é o combate ao racismo.

“Já começa aqui o desafio de enfrentar esse racismo que está expresso e é reproduzido na escola, em todas as instâncias da sociedade”, afirmou a secretária. “Então, é importante ter isso no horizonte da organização do currículo, do material didático, no modo como os professores se relacionam com os alunos, no modo como a gente cria ambientes na escola, para que esses estudantes sejam escutados.”

Essa orientação ideológica também se reflete nas escolhas para o Conselho Nacional de Educação (CNE). Esse é um colegiado técnico com caráter orientativo na formulação de políticas públicas educacionais. Em agosto de 2024, o presidente Lula indicou oito novos nomes para compor o colegiado. Desses, ao menos cinco já ocuparam cargos políticos no Legislativo ou atuaram como secretários em gestões do PT. No total, o CNE é formado por 24 conselheiros, que têm quatro anos de mandato. 

Consultadas por Oeste, fontes que atuam em entidades da área de Educação afirmam que os nomes indicados por Lula não dão abertura para a discussão de pautas consideradas mais “conservadoras” na área. É o caso do investimento em escolas cívico-militares ou no homeschooling.

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3 comentários
  1. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    A preocupação da secretaria socióloga é o combate ao racismo… sem chance de dar certo

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Esta gangue alojada em Brasília atualmente não tem qualquer compromisso com a educação dos jovens brasileiros. O intuito é somente enfiar goela abaixo a agenda woke.
    Ana Paula fez um excelente artigo tempos atrás sobre o documento elaborado por uma junta que se diz de educadores em Brasília. Tinham mais palavras como LGBT, por exemplo, que matemática.

  3. Ednelson Barbosa de Sousa
    Ednelson Barbosa de Sousa

    A falta de conhecimento é que sustenta o comunismo..

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