“Aprenda comigo — se não pelos meus
conselhos, ao menos pelo meu exemplo — quão
perigosa é a aquisição do conhecimento, e como é
mais feliz aquele que enxerga limites no mundo
à sua volta do que aquele que aspira a se tornar
maior do que sua natureza permite.”
(Mary Shelley, Frankenstein, 1818)
A ideia de um computador que use células cerebrais humanas não parece deste mundo. Humanos são humanos — sangue, ossos, nervos, tecidos. Computadores são computadores — circuitos, placas, chips. Podem conviver, mas não se misturam. Ou não se misturavam. Até agora.
A startup australiana Cortical Labs derrubou o muro que separava os humanos de suas criações e desenvolveu o CL1, o primeiro “computador biológico”. Tem o tamanho de uma caixa de sapatos. Seu mostrador é extremamente simples.
A revolução está no hardware, um disquinho de cinco centímetros com 1.024 eletrodos capazes de transmitir sinais elétricos. No topo de cada disquinho, chamado DishBrain, estão misturadas células de humanos e de ratos. As células e os chips mesclam-se numa rede neural única, meio humana, meio eletrônica. Chips e neurônios viram uma coisa só.
Um corpo artificial
Não pense que, como na história de Frankenstein, o pessoal da Cortical Labs foi até o cemitério mais próximo roubar cérebros dos mortos. As células humanas foram doadas por voluntários.
“Nós pegamos células de sangue ou de pele e podemos transformá-las em células-tronco”, explicou o fundador e CEO da Cortical Labs, Hon Weng Chong, para a agência Reuters. “E transformamos as células-tronco em células cerebrais ou em neurônios que usamos para computadores e inteligência.”
O computador CL1 tem um aspecto que lembra o monstro criado por Victor Frankenstein. Por conter células vivas, seu hardware precisa ter um sistema vital para que as células não morram. Bombinhas fazem o papel do coração, pequenos tubos armazenam os dejetos, filtros de água fazem o papel dos rins. Um misturador de gás distribui o oxigênio, o nitrogênio e o dióxido de carbono para as células.
A esta altura podemos pensar que o biocomputador é mais do que uma máquina. Ficou parecido com um ser vivo. Conforme esses computadores evoluírem, vão precisar de “corpos” mais evoluídos. Em que direção estamos indo?
E para que serve o CL1?
“No curto prazo podemos usá-lo para a medicina personalizada”, declarou Hon Weng Chong à Reuters. “E também para a descoberta e o desenvolvimento de novas drogas. Com esse tipo de tecnologia nós potencialmente poderemos cultivar neurônios retirados de pacientes com demência ou epilepsia, e testar compostos e drogas que serão personalizados e produzidos especificamente para esses pacientes.”
Em outras palavras, hoje temos computadores que analisam problemas neurológicos. Um computador como o CL1 é um cérebro e pode dar respostas muito mais exatas se forem implantadas nele células cerebrais doentes. Trata-se de um conceito novo de medicina, uma integração entre doença e diagnóstico como jamais ocorreu.
Segundo a Cortical Labs, “o CL1 é o primeiro computador biológico que permite que laboratórios médicos e de pesquisa testem como neurônios reais processam informações, oferecendo uma alternativa eticamente superior aos testes em animais, ao mesmo tempo que fornece dados e insights humanos mais relevantes”.
Inteligência biológica sintética
Esse é um território novo, que obviamente vai levantar questões éticas igualmente inéditas. Afinal, o CL1 é considerado uma “inteligência biológica sintética”. Essa inteligência vai conhecer deveres e direitos? Será considerada máquina ou ser vivo?
A Australian Broadcasting Corporation entrevistou a professora Silvia Velasco, especialista em medicina com base em células-tronco e que não participou do desenvolvimento do CL1. Sua resposta sobre as questões éticas do projeto: “Neste momento, considero essa uma preocupação infundada. Acho que seria uma oportunidade perdida não poder usar um sistema que promete curar doenças cerebrais devastadoras. Mas, ao mesmo tempo, é importante avaliarmos e anteciparmos potenciais preocupações que o uso desses modelos possa levantar.”
4 bilhões de anos
Fora do terreno da medicina, a biocomputação oferece possibilidades promissoras. A pesquisa conseguiu seu primeiro resultado em 2021, quando 800 mil neurônios humanos ligados a um chip aprenderam intuitivamente a jogar o Pong, um game primitivo lançado pela Atari em 1972.
Parece muito simples, mas foi um marco na história da inteligência artificial. Um “cérebro” misto de chips e células tomou uma iniciativa e aprendeu sozinho a jogar o game. Esse momento abriu uma avenida de possibilidades para o uso de biocomputadores na área de inteligência artificial.
Segundo a Cortical Labs, “a IA tradicional exige vastos conjuntos de dados, mas os neurônios reais aprendem intuitivamente com treinamento mínimo e uma fração da energia”.
A inteligência artificial como a conhecemos hoje é uma simulação da inteligência humana. O CL1 é outra coisa, segundo seus fabricantes. Biocomputadores são “autoprogramados, infinitamente flexíveis e o resultado de 4 bilhões de anos de evolução”.
Camponeses assustados
Quatro bilhões de anos depois, o que provoca em você a ideia de um computador com neurônios humanos? Repulsa? Curiosidade? Medo? Entusiasmo?
Vivemos tempos extraordinários a uma velocidade à qual não estamos acostumados. Seremos o doutor Victor Frankenstein, que usou (no nascimento do século 19) o assustador poder da eletricidade para dar vida a uma colagem de corpos? Ou seremos os camponeses assustados que foram com tochas ao castelo para interromper seus experimentos e tentar brecar a marcha da evolução?
“Tanta coisa já foi feita, exclamava a alma de Frankenstein — mas eu vou mais longe, muito mais! Vou seguir os rastros deixados e abrir um novo caminho, explorar poderes desconhecidos e revelar ao mundo os mistérios mais profundos da criação.“
(Mary Shelley, Frankenstein, 1818)
dagomirmarquezi.com
@dagomirmarquezi
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No principio, no Genesis da Bíblia, as primeiras pessoas quiseram construir a Torre de Babel.
Não queriam conhecer Deus, queriam ser Deus! Hoje continua o mesmo desejo! Dizem que a intenção é boa, mas Deus conhece a intenção do coração e sabe que o mal é o combustível que move as intenções. Há um juízo da parte de Deus: Repentina destruição!😪
Excelente matéria do repórter Dagomir.
Excelente matéria do repórter Dagomir.
4 bilhoes de anos de evolução? Com certeza não foi na terra, pois a vida aqui surgiu bem depois