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Edição 272

O batom na comédia do homem-cis-branco-hétero

A condenação do humorista Leo Lins a mais de oito anos de prisão é sintomática da juristocracia fundamentalista instaurada no Brasil para intimidar, silenciar e aniquilar opositores políticos

Inspirado por formatos consagrados como The Daily Show e Last Week Tonight with John Oliver, o Albasheer Show, programa humorístico iraquiano apresentado por Ahmed Albasheer, teve a sua estreia televisiva no canal panárabe Al-Sharqiya em 2014, mas logo foi banido das televisões iraquianas; afinal, naquele mesmo ano, o Estado Islâmico (grupo terrorista teocrático que dispensa apresentações) espalhava-se pelo território daquele país como agressivo câncer em metástase.

Desafiando a censura midiática, Albasheer levou as suas piadas e sátiras políticas às especificidades culturais, sociais e religiosas do seu país para plataformas digitais como o YouTube e, nelas, consolidou-se como uma das vozes mais críticas e influentes do jornalismo humorístico do mundo árabe, um espaço raro — e perigoso tanto para o apresentador e sua equipe quanto para a audiência — de crítica à corrupção, ao sectarismo religioso e à vida pública nacional.

Em um ambiente onde o jornalismo tradicional muitas vezes se vê cerceado por ameaças, pressões governamentais e autocensura, Albasheer — comediante e conhecedor profundo das estruturas que satiriza com inteligência e ousadia (já foi vítima de sequestro seguido de tortura, além de ter perdido familiares em atentados terroristas) —, entre comentários cômicos, reportagens satíricas, quadros humorísticos e entrevistas, tem como diferencial a habilidade de comunicação direta com o público, utilizando uma linguagem ível, espirituosa e, por vezes, mordaz, que mistura o dialeto iraquiano, expressões populares e referências culturais locais.

O comediante iraquiano Albasheer transformou o humor em ferramenta de resistência, desafiando censura e violência com sátiras afiadas e linguagem popular para denunciar os abusos do poder | Foto: Wikimedia Commons

A sátira se torna, nesse contexto, uma forma de expressão política legítima e uma ferramenta de conscientização social. O humor empregado no programa não é mero entretenimento: é, ao mesmo tempo, um momento de alegria para um povo que apenas vive sofrimento, e também um instrumento de denúncia e resistência.

Albasheer é um fenômeno cultural e o seu sucesso transcende as fronteiras iraquianas em milhões de visualizações semanais no YouTube por um público amplo e dispersado ao longo de toda a diáspora árabe. Ao unir humor, jornalismo e crítica social, Ahmed Albasheer criou uma plataforma única, que expõe as fragilidades da “democracia” iraquiana e, ao mesmo tempo, oferece ao público uma via de escape, reflexão e, sobretudo, esperança.

Em tempos de desinformação estruturada (estatal), de censura e, consequentemente, autoritarismo, Albasheer comprova que o riso é uma arma letal; que a sátira sempre foi um dos instrumentos mais eficazes contra qualquer tirania. Tanto isso é verdade que autoridades e líderes políticos reagem ao trabalho de Albasheer ou com censura direta ou criminalizando o discurso humorístico sob o rótulo do ódio diabólico — e qualquer semelhança com os eventos atuais no Brasil, isto é, com a bruta condenação penal do comediante Leo Lins, não é mera coincidência.

A relevância do Albasheer Show se explica à luz da filosofia política e da teoria da comunicação, especialmente no que tange à liberdade de expressão, à função da crítica na esfera pública e ao papel do humor na contestação do poder.

A atuação de Ahmed Albasheer vivifica aquilo que Stuart Mill, em On Liberty (1859), teoriza: a liberdade de expressão do pensamento é condição necessária e indispensável ao progresso intelectual e moral de uma sociedade, mesmo que as ideias expressadas sejam controversas ou ofensivas, de maneira que o ato de as silenciar é sempre um mal maior, já que impede o confronto racional entre diferentes perspectivas. Albasheer também atesta Henri Bergson que, em Le Rire (1900), associa o humor à sanção social: rimos do que se torna rígido, previsível ou dissonante da vida. Ele comprova, ainda, a sustentação de Mikhail Bakhtin em seu Problemy poetiki Dostoevskogo: o riso subverte hierarquias, criando momentos de inversão simbólica.

A trajetória de Ahmed Albasheer exemplifica as teses de Mill, Bergson e Bakhtin ao revelar como o humor pode ser uma forma de crítica social, liberdade intelectual e subversão simbólica contra o autoritarismo | Foto: Reprodução/Reddit

No caso do Albasheer Show, a sátira política exerce esse papel de provocação intelectual, permitindo que a sociedade iraquiana se confronte a si mesma. O programa prova que a liberdade de expressão não é apenas um direito formal, mas uma prática viva e arriscada. Cada episódio funciona como um catalisador da esfera pública; é um espaço onde a opinião pública se forma, não a partir do discurso estatal ou da mídia oficial, mas de um olhar satírico e popular, que devolve ao povo uma linguagem ível, crítica e mobilizadora. O programa reconstrói, com humor, a possibilidade de um debate civil alternativo.

O riso, aqui, não é apenas catarse; é ato político. Não à toa, avolumam-se testemunhos de jovens iraquianos e de outras nacionalidades vizinhas que deixaram de integrar o Estado Islâmico em razão do humor de Albasheer.

De fato, no mundo islâmico, Albasheer é a bomba atômica contra o fanatismo.

Fanatismo jurisdicional

Aristóteles, em sua Ética, ensina que, se as qualidades morais são destruídas pelo excesso e pela deficiência, a virtude é um estado mediano entre dois vícios. Se é assim, tanto o idealista extremista quanto o extremista realista guardam o mesmo problema: um ponto de vista parcial e limitado do conjunto total do ser.

Qualquer zelo extremo, por melhores que sejam as intenções, nunca é uma virtude. Praticar o zelo extremo é impedir o conhecimento profundo e negar as nuances. É a norma fundamental de qualquer fanatismo… e falar, hoje, em fanatismo é falar da contumácia na tomada de ações que provocam males de qualquer natureza em decorrência de uma convicção religiosa ou político-jurídico-ideológica.

Atualmente, “fanatismo” é termo que engloba todas as formas de hiper-religiosidade, conhecidas ou não, bem como todas as manifestações extremistas fora do âmbito religioso (hipermilitância).

Para Amós Oz (maior escritor israelense contemporâneo em seu discurso Como Curar um Fanático), o problema do fanatismo “é mais antigo que o islã, mais antigo que o cristianismo, mais antigo que o judaísmo, mais antigo que qualquer Estado ou qualquer governo, ou sistema político, mais antigo que qualquer ideologia ou crença no mundo”; seu crescimento, nesse diapasão, “pode ter relação com o fato de que, quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples”.

No regime de exceção instalado no Brasil pela atual composição de usurpadores do Supremo, o fanatismo (extremismo) jurisdicional é, a partir da teoria de Jürgen Habermas (Glauben und Wissen, 2002), um fenômeno exclusivamente moderno que nasce do secularismo e, portanto, das práticas pseudodemocratizadas do Direito:

“A palavra ‘secularização’ teve, de início, o significado jurídico da expropriação forçada dos bens da Igreja com sua cessão ao poder estatal secular. Esse significado foi vertido na íntegra para caracterizar o surgimento da modernidade cultural e social. Desde então, ligam-se à ‘secularização’ avaliações opostas, dependendo daquilo que colocamos em primeiro plano: […] modos de pensar […] são levados à substituição por equivalentes racionais, em todo caso superiores; […] são objeto de descrédito como bens subtraídos ilegitimamente. O modelo do deslocamento forçado sugere uma interpretação progressista-otimista da modernidade desencantada; […] uma interpretação teórica que fala em decadência, em desabrigo da modernidade. Um só pode vencer à custa do outro e, mais especificamente, segundo regras de jogo liberais, as quais privilegiam as forças impulsivas da modernidade. […] Fica desfocado o papel civilizatório de um common sense democraticamente ilustrado […] à autoridade de ciências que se investem do monopólio social de conhecimento de mundo. […]. Com sua exigência por explicações racionais, a ilustração científica parece trazer para junto de si um common sense que tomou lugar no edifício do Estado constitucional democrático construído segundo o direito racional. […]. Porém essa legitimação jurídico-racional de direito e política alimenta-se de fontes da tradição religiosa há muito profanadas. […]. Quando o pecado se converteu em culpa, quando a transgressão contra mandamentos divinos se transformou em agressão a leis humanas, algo se perdeu. […]. Perdeu-se a esperança na ressurreição, e isso deixa atrás de si um vazio notável.”

A condenação do humorista Leo Lins a mais de oito anos de prisão é sintomática da juristocracia fundamentalista instaurada no Brasil para intimidar, silenciar e aniquilar opositores políticos. Se o Supremo Tribunal Federal, mais alto círculo do organograma golpista do Poder brasileiro, é a fonte do fanatismo, todo juiz de menor patente é encorajado a explodir tudo aquilo que conhece de Direito.

A sentença a mais de oito anos imposta a Leo Lins exemplifica o avanço de uma juristocracia ideológica no Brasil, onde a repressão a opositores políticos a a ser legitimada por tribunais supremos e replicada por juízes de instância inferior | Foto: Reprodução/X

Ó! E agora? O que pode salvar o povo brasileiro do extremismo jurisdicional?

Eis os antídotos: pensamento crítico, ceticismo e, principalmente, o humor — justamente tudo aquilo que um fanático não possui.

Compreende quão perigoso é um brasileiro como Leo Lins?

Volto, assim, ao celebrado e já mencionado discurso de Amós Oz:

“A curiosidade juntamente com o humor são os dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas. […] O senso de humor é uma grande cura. Nunca vi em minha vida um fanático com senso de humor, nem nunca vi uma pessoa com senso de humor tornar-se um fanático, a menos que ele ou ela tenha perdido o senso de humor. Fanáticos são frequentemente sarcásticos. Alguns deles têm um senso de sarcasmo muito agudo, mas não de humor. O humor encerra em si a capacidade de rirmos de nós mesmos. […]. Se eu pudesse comprimir um senso de humor em cápsulas e persuadir populações inteiras a engolir minhas pílulas de humor, assim imunizando todo mundo contra o fanatismo, eu poderia me candidatar um dia ao Prêmio Nobel de Medicina, não de Literatura.”
(Como Curar um Fanático, p. 77-79)

No século 17, o poeta neolatino francês Jean de Santeul cunhou um dos dísticos mais importantes do pensamento da nossa civilização: “Ridendo castigat mores” (“os costumes corrigem-se rindo”). À juristocracia brasileira, talvez o riso seja mais perigoso que o batom de Débora se assumirmos que “Ridendo castigat Moraes”.

Os advogados presentes na audiência criticaram a escolha de Moraes de cobrir a fala | Foto: Lula Marques/Agência Brasil
A crítica denuncia que, no Brasil atual, Alexandre de Moraes teria subvertido o princípio de que o riso corrige os costumes, instaurando um regime em que o humor a a ser criminalizado | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Leia também “A galinha voadora e a dama perdida”

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1 comentário
  1. Mary Rodrigues De Oliveira Rios
    Mary Rodrigues De Oliveira Rios

    Em que País estamos nos transformando, aliás, estão transformando a gente…

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