Ter uma voz agradável, usar frases que não ultraem duas linhas, facilitar o entendimento do conteúdo com pausas e oscilações no tom, valer-se de um vasto repertório vocabular que proíba a entrada de expressões pedantes, saber a diferença entre veemência e gritaria, dominar os temas de que trata e botar na cabeça que a paciência de qualquer plateia tem limite. Basta seguir essas regras para que um orador aplicado consiga ser aplaudido no fim do discurso escrito. Como no teatro ou no cinema, é só seguir o script. Bem mais complexo é falar de improviso. Essa é uma graça só alcançada por tribunos de nascença.
Essa tribo dá a impressão de que faria bonito num discurso previamente escrito antes mesmo de aprender a ler e falar. Gente assim transforma a oratória improvisada numa irável forma de arte. Não há um script a seguir. Mas tribunos discursam com tamanho brilho que multidões os acompanham com atenção hipnótica. Com uma torrente de palavras vindas sabe Deus de qual canto do cérebro, vão burilando um roteiro soprado pelas reações de quem ouve e pelo instinto de quem fala. Carlos Lacerda era assim. Governador do antigo Estado da Guanabara, jornalista, deputado federal, adversário feroz do governo de Getúlio Vargas encerrado pelo suicídio, Lacerda foi o maior tribuno da história do Brasil.

Hoje reduzido a um viveiro de homens públicos incapazes de tratar com gentileza o idioma nacional, o país dos tempos de Lacerda não era um deserto de oradores. Escritores como José Lins do Rego e Graciliano Ramos costumavam ar tardes inteiras no Congresso, então localizado no Rio de Janeiro, acompanhando os embates verbais travados por parlamentares. Nessas paragens agora presididas por um analfabeto funcional, não havia vagas na Série A formada pela cúpula dos três Poderes para quem tratasse a pontapés a língua portuguesa.
O que houve com o Brasil para que a elite do governo, do Supremo e do Congresso fosse reduzida a um bando sem chances de aprovação num exame organizado pelo Enem? Essa interrogação me aflige desde que testemunhei a performance do ministro Gilmar Mendes em mais uma discurseira no Supremo Tribunal Federal sobre a missão impossível: convencer o país de que, para preservar a democracia, as rede sociais devem ser censuradas — e censuradas pelas empresas que as istram. Como já ouvi dezenas de vezes o decano do Pretório Excelso lendo seus votos repletos de latinórios e citações de juristas alemães, não resisti à tentação de vê-lo em ação num improviso. O que vi foi a Ópera do Juiz Doidão.
O ministro Cristiano Zanin dizia que as próprias plataformas devem criar uma empresa privada “para moderação de conteúdo” quando foi aparteado pelo decano: “Eu provoquei um pouco esse tema, eu não me animo muito a tentar definir a natureza dessa entidade”, começou o improviso de Gilmar. Embora não saiba direito o que quer, acha “fundamental” o que não sabe direito o que é. “Acho que é um consenso entre nós de que é preciso uma entidade”, enrolou-se. Fez uma pausa e resolveu fornecer algumas informações sobre o lugar onde pode ser encontrado o que não sabe bem o que é.
“Um pouco naquela linha, nós todos somos iradores do regime chinês, né, do Xi Jinping, né, que diz assim: a cor do gato não importa, o importante é que ele cace o rato”, desandou. “E essa coisa do público e do privado”, derrapou de novo. O presidente Luís Roberto Barroso (que já enxergou “pitadas de psicopatia” em Gilmar) resolveu que o agora amigo precisava de socorro. E esclareceu que o autor da teoria dos gatos e ratos foi Deng Xiaoping, chefe da ditadura chinesa entre 1978 e 1992. Xiaoping achava perda de tempo discutir se o “socialismo com características chinesas” adotava fórmulas capitalistas nas reformas econômicas em andamento. O importante, insistia, era saber se funcionavam.

O esclarecimento parece ter perturbado Gilmar: “Se olharmos a crise séria que enfrentamos nos últimos anos e as respostas que conseguimos dar…”, murmurou. “Nós temos que perder o nosso complexo de vira-lata. Temos que dizer: ‘Poxa, conseguimos, sim, conceber mecanismos de defesa adequados para assunção de problemas que eram sérios’.” Em seguida, o decano elogiou o desempenho do Tribunal Superior Eleitoral nos tempos em que foi comandado por Alexandre de Moraes. Mas não custa ver como é o sistema chinês, foi em frente. Muito simples, sabem os que não sofrem de estrabismo malandro. Plataformas como Google, YouTube e Facebook foram banidas do país. E o TikTok opera sob censura e com rigorosa vigilância.
É isso o que Gilmar Mendes quer, mas não consegue confessar com clareza. Enquanto não se decide, alguém precisa sugerir-lhe quatro providências urgentes. Primeira: usar parte do tempão consumido em viagens e congressos no estudo da história da China. Segunda: não errar publicamente o nome de ditadores que lhe servem de exemplo. Terceira: melhorar o português. A quarta é a mais importante: nunca mais falar de improviso.
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Esses ministros estão mais para Idi Amin que teria dado liberdade de expressão, mas avisava que depois de proferida a expressão ele não garantia a liberdade.
Esse pessoal não cansa de ar vergonha e principalmente ,mostra a nós todos na cara dura confessando diretamente do órgão jurídico mais alto de um país ,a predileção por um sistema ditatorial que já mandou para vala milhões de opositores
Texto delicioso.
O que vai acontecer com a nossa liberdade de expressão? Ninguém tem a menor ideia. Tudo é possível numa terra sem lei.
O que aconteceu com a língua portuguesa no Brasil? Diagnóstico simples e tristíssimo: a deteorização da Educação no país. Como um câncer insidioso que vai corroendo o corpo inteiro, o Brasil apodrece. Os políticos, de costas para o povo, se autoalimentam de mordomias e benefícios. Os ministros de capa preta são exemplares de urubus ridículos, fechados no viveiro do stf.
O que nos resta é esperar pelo feriadão de Corpus Christi e rezar.
E esperar pelo seu próximo artigo.
Outro esclerosado
Sem comentários
O STF é uma quadrilha especializada em combater a democracia.
SAMBA DO CRIOULO DOIDO. OS CARAS TÃO MAIS PERDIDOS DO QUE CEGO EM TIROTEIO. SIMPLESMENTE INCRÍVEL
Essa leva de ministros faz vergonha até a um aluno de Direito do primeiro semestre da faculdade. É lamentável que a maior Corte do país tenha se reduzido a isso.
Brilhante Augusto, começando pelo título