Nas crônicas de Nelson Rodrigues, toda grã-fina que vai pela primeira vez a um domingo no Maracanã repete a mesma pergunta antes mesmo do apito inicial: “Quem é a bola?”. Não deve ser muito maior a intimidade de Gilmar Mendes com o mundo do futebol. Mas o decano anda esbanjando criatividade e talento em jogadas sem bola no campo do Supremo Tribunal Federal. Livre de plateias, ele acumula as funções de árbitro, bandeirinha e VAR. Em seguida, faz coisas de que até Deus duvida para ampliar a coleção de gols de placa. Num único fim de semana deste maio, decidido a encerrar disputas pela presidência da Confederação Brasileira de Futebol, vulgo CBF, mostrou com dois golaços quem está no controle.
Há dois meses, depois de resgatado por Gilmar de outro degredo decretado pelo Tribunal de Justiça do Rio, Ednaldo Rodrigues foi eleito por unanimidade para mais uma temporada na presidência. O apoio das 27 federações foi turbinado pela duplicação do salário pago aos chefões estaduais (ganham agora mais de R$ 120 mil, fora mordomias de espantar príncipe saudita). Como o voto de cada federação vale 3 pontos, quem seduz a turma toda chega a 81. É um número superior à soma dos 20 clubes da Série A do Brasileirão (2 pontos cada) e dos 20 da Série B (1 ponto). Compreensivelmente, Ednaldo baixou no Rio pronto para enfrentar os incontáveis 17 apertos de mão pela contratação do treinador italiano Carlo Ancelotti. Surpreendeu-se ao saber que a Justiça fluminense de novo ordenara que caísse fora da CBF. Imediatamente buscou o socorro de Gilmar. Encontrou o padrinho já detalhando a escalação do time adversário.

Também ficou sabendo que perdera o emprego para um concorrente improvável: Samir Xaud, médico infectologista, 41 anos e, mais importante que tudo, filho de Zeca Xaud, que há 40 comanda a Federação Roraimense de Futebol. Até dois dias antes, o pai pretendia transformar Samir em seu sucessor na entidade a partir de 2027. Via nesse projeto uma forma de consolar o herdeiro que ainda convalesce do fiasco das tentativas de eleger-se deputado estadual e, na eleição seguinte, deputado federal. Seria um consolo de duvidosa eficácia: o doutor já quarentão teria de dedicar-se em tempo integral a um caso de raquitismo crônico. O campeonato estadual é disputado por oito clubes. A plateia de muitas partidas é frequentemente inferior a 50 torcedores. Um único time disputa a Série D do Brasileirão. Os demais nunca vão longe na Copa do Brasil e na Copa Verde, esta restrita a equipes do Centro-Oeste e do Norte. Samir já vinha prometendo estimular o surgimento de novas equipes e tornar menos indigentes as que por lá sobrevivem. A primeira promessa talvez fosse cumprida se todos os ianomâmis subitamente se apaixonassem pela prática do futebol.
As trapaças da sorte livraram Samir de lidar com tais miudezas. Ele foi dormir sem saber que teria o nome mencionado em dezenas de conversas telefônicas ou encontros reservados que atravessaram a madrugada. Dessas trocas de impressões participaram donos de empresas de bets, governadores estaduais, deputados, senadores e, claro, cartolas profissionais. Quando Samir acordou, já se decidira que no dia 25 ele assumiria a gerência de uma usina de fazer dinheiro. A CBF organiza os principais campeonatos, define o calendário futebolístico anual e, seja qual for o desempenho dos jogadores, lucra bilhões todos os anos com negócios envolvendo a seleção brasileira. Mas convém que Samir entenda: gerente não é dono. A sensatez recomenda que matenha em excelente estado de conservação as relações que ará a manter com os personagens que efetivamente determinam o que deve ou não deve ser feito (Ednaldo parece ter se esquecido disso. Deu no que deu).

Gilmar ingressou nessa tropa de elite em agosto de 2023, quando enxergou a oportunidade de associar-se à CBF para elevar expressivamente a altitude das cifras que mediam a movimentação financeira do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (o IDP do Gilmarpalozza, dos seminários em Portugal e outras irrelevâncias). Ele acabara de livrar Ednaldo de outra encrenca judicial. O cartola gostou da ideia de virar parceiro do IDP, oficialmente dirigido pelo filho do ministro, Francisco Mendes. Que tal entregar ao IDP a montagem de todos os cursos que transformariam a CBF Academy no respeitado braço educacional da mais poderosa confederação esportiva do país?, propôs Chico. É o que estabelece o caudaloso contrato, uma procissão de cláusulas cuja ambiguidade autoriza quaisquer interpretações. O mesmo item permite acreditar que vem aí uma brilhante leva de reformadores da istração esportiva ou uma esforçada turma de gandulas. Ainda não houve uma única e escassa festa de formatura. Mas o balanço anual exibe algarismos animadores — sobretudo para o IDP. Animado, o ministro resolveu ampliar seus poderes na CBF com a indicação de seis diretores.
Mesmo sem conhecer pessoalmente o novo sócio — o contrato com a CBF vale por ao menos dez anos —, o decano do STF foi um dos mais aplicados cabos eleitorais de Samir. Certamente se amparou no relato do filho Chico Mendes, que gostou da conversa que teve com o cartola de Roraima durante o voo que juntou a dupla interessada em ver a final da Copa Verde. Entre os oito vice-presidentes da CBF estará o advogado Flavio Zveiter, que também ocupará o cargo de CEO da entidade. O estilo espaçoso de Zveiter também contribuiu para que fosse escolhido um presidente de perfil discretíssimo. Samir estará ganhando a partir de julho o salário de R$ 383,6 mil. Quase R$ 5 milhões por ano destinados ao presidente. Para conviver com Gilmar Mendes e seus cartolas de luxo, pode até ser pouco.

— Com reportagem de Eugenio Goussinsky
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O mundo do futebol brasileiro é uma teia imunda, com uma tessitura imunda, trançada por gente imunda. O esporte bretão, aqui, degenerou-se, e, curioso, nunca perde a pose. Os jogadores -príncipes têm amor zero pelos times e a plateia otária lota os estádios e adora seus ídolos. No final, tudo acaba em pizza, mesmo depois de uma final ridícula e vexatória como a do 7×1.
CBF entidade privada, se juntando com o STF, meio estranho né? Quer que sua honra seja devolvida, então vai procurar na lata do lixo!
GILMARPALOZZA !!!!!
ESTE É O BRASIL ATUAL DO STF.