No início de 2024, a LVM Editora brindará os leitores brasileiros com a edição em português de A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable (“O manifesto de um herege: ensaios sobre o que não se pode falar”, em tradução livre), terceiro livro do autor britânico Brendan O’Neill. Editor de política da revista inglesa Spiked, O’Neill é também colunista de Oeste, com textos exclusivos para s.
A obra é uma coletânea de ensaios do autor, em que discorre sobre uma nova tirania: a do politicamente correto (PC), que vem censurando, punindo e destruindo o pilar da liberdade que funda a civilização ocidental. Com destaque para o mundo anglo-saxão, os eventos e fenômenos mostrados por O’Neill são observáveis em todo o Ocidente, incluindo o Brasil.

Brendan O’Neill falou com exclusividade para Oeste sobre seu “manifesto herético”, “racismo das baixas expectativas”, ideologia woke, cultura do cancelamento e manipulação da linguagem. Contou o momento em que decidiu escrever seu novo livro. E revelou seu maior temor nesta crescente onda de autoritarismo.
A analogia entre hereges históricos e contemporâneos é frequente ao longo dos seus ensaios. O senhor poderia nos falar um pouco do processo de como e quando percebeu essa correlação?
Alguns anos atrás eu comecei a achar que a cultura do cancelamento tem uns ecos sombrios da Inquisição. Não em todos os aspectos, é claro. Ninguém está indo para a fogueira nos anos 2020 pelo que acredita. Mas a linguagem acusatória de hoje é similar àquela do ado. E a sanha em aniquilar — socialmente, se não fisicamente — é assustadoramente parecida também. Foi o uso generalizado da palavra “negacionista” que me fez pensar pela primeira vez que estamos ando por uma nova guerra à heresia. Você ouve essa palavra o tempo todo, com destaque para o insulto “negacionista climático”. Questione qualquer aspecto do alarmismo sobre mudanças climáticas e vão condená-lo como “negacionista”. Vão tentar mantê-lo fora do ar e longe dos campi universitários. Vão despersonificá-lo. Depois percebi que, mesmo que você aceite que mudanças climáticas estão ocorrendo, mas não gosta de algumas das políticas propostas para lidar com isso, ainda assim vão chamá-lo de negacionista. Durante o movimento #MeToo, se você levantasse questões a respeito do fracasso do devido processo legal, chamariam você de “negacionista de estupros”. E por aí vai. E, é claro, essa noção — de alguém que nega a verdade — era central na era da Inquisição. Isso me fez pensar: o que mais na cultura do cancelamento vem do ado? Comecei a ficar muito interessado no assunto da caça aos hereges — o que a motivava, quem era alvo, que justificativas se davam? E descobri tanta coisa que aconteceu naquela época e acontece de novo hoje. Mais uma vez, as pessoas são punidas por “negar a verdade”, por envenenar as almas dos homens, por ser uma ameaça à moralidade, por potencialmente enlouquecer as massas com suas ideias perigosas — chamamos isso de “incitar o ódio” agora.

Foi nesse momento que o senhor decidiu escrever o livro?
A gota d’água para mim foi a demonização de mulheres que não aceitam a ideologia do transgenerismo. Ao longo dos últimos cinco anos, ou algo assim, qualquer mulher que “negue” que um homem possa se tornar uma mulher — a nova verdade religiosa da nossa época moralmente perdida — é severamente perseguida. Ela é rotulada como intolerante, transfóbica, uma “Terf” (“feminista radical que exclui trans”). Esses insultos são cuspidos nessas mulheres com o mesmo ódio e veneno com que se faziam acusações de bruxaria outrora. Foi quando pensei comigo mesmo: a caça às bruxas, a humilhação pública, a guerra à heresia estão de volta. Palestrei na Universidade de Oxford em 2018, destacando minha crença herética central — a de que as pessoas nunca conseguem mudar de sexo. A reação foi insana. Houve protestos. O jornal estudantil de Oxford me condenou por meu “ódio”. Uma ouvinte ficou tão horrorizada pelo que eu disse que começou a hiperventilar e teve que ser retirada da sala. E assim reconheci, sem dúvida, que estamos numa nova era de irracionalismo, uma nova era de ódio ao livre pensar. E decidi que precisava escrever sobre isso.
O senhor acha que houve um momento de virada em que o bom senso tornou-se herético, e o politicamente correto assumiu seu lugar como o pensamento predominante (isto é, imposto pelas elites culturais)?
Penso nisso com frequência. Acho que há uma tentação de procurar a grande virada, o momento-chave em que nossas sociedades relativamente livres se tornaram “woke” e cada vez mais iliberais. Mas, na verdade, não acho que houve um momento propriamente dito. Prefiro usar a metáfora do sapo fervido para descrever o dilema em que nos encontramos. Assim como o sapo não percebe que está em água quente até ser tarde demais, acredito que tenhamos sido cercados pela espiral do PC e da cultura woke por muito tempo, e só recentemente percebemos isso. Embora eu esteja confiante de que ainda não é tarde demais para fazer algo a respeito. O que me é mais interessante é a forma como o autoritarismo ou de um fenômeno principalmente de direita para um fenômeno de esquerda. Quando pensamos nas explosões de autoritarismo no ado não tão distante — o macartismo, por exemplo, ou a pressão religiosa para censurar literatura gay ou música rap nas décadas de 1970 e 1980 —, eram principalmente os conservadores que estavam na vanguarda dessas missões morais. Mas, em algum momento dos anos 1970, o bastão foi ado da direita para a esquerda. Hoje, vivemos sob uma tirania de controle do pensamento quase inteiramente justificada em linguagem de esquerda: manter minorias seguras contra ofensas, manter a paz em uma sociedade multicultural, combater o ódio etc.
O que é a cultura woke?
Para mim, “cultura woke” é um termo útil, mas não conta a história toda. Acredito estarmos vivendo sob uma ideologia que não tem de fato um nome — ainda não, pelo menos. Ela emergiu em etapas. Primeiro, nos anos 1970, os progressistas começaram a perder a fé nas pessoas comuns. Começaram a ver as massas como facilmente influenciáveis, em especial pela grande mídia e pela publicidade, e assim se incumbiram de limitar nossa exposição a tais males e tentar controlar como pensamos e nos comportamos. Os hippies viraram tiranos. Então, nos anos 1980, tivemos a ascensão do politicamente correto: novas formas de falar, projetadas para alterar o próprio pensamento. E, mais recentemente, dos anos 2000 em diante, tivemos o “woke”, o estágio mais novo e elevado dessa ideologia sem nome. Nessa fase, o policiamento da linguagem tornou-se cada vez mais severo. As pessoas agora são colocadas em listas negras abertamente, ou banidas das redes sociais, ou até fisicamente atacadas por seu pecado de “erradopensar” [“wrongthink”].

Como o Ocidente, com sociedades que podem ser consideradas símbolos da liberdade, se submeteu a isso?
Cada etapa se alicerçou sobre a anterior. Temo que, entre conservadores e liberais de fato, tirar sarro desse desenrolar — “o PC enlouqueceu!” — tenha sido uma tentação frequente, em vez de levá-lo a sério e submetê-lo a uma análise e crítica rigorosas. As pessoas perderam tanto tempo rindo do fato de que as crianças não podiam mais cantar “mé, mé, ovelha negra” — é racista, aparentemente —, que não pararam para pensar quão extraordinário era que a nova tirania tivesse chegado até mesmo às cantigas de ninar. E assim a ideologia sem nome cresceu, descontrolada, até ficar fora de controle. Mesmo agora, muitos conservadores parecem não considerar o tamanho da ameaça que essa nova ideologia representa para o nosso estilo de vida. Para a liberdade, para o livre pensar, para a integridade da família e até para a ordem social. Precisamos entender que lacração não é gozação.
Não pude deixar de anotar a palavra ‘denegrir’ quando a li no seu livro. No Brasil, o verbo é frequentemente usado como exemplo de palavra de ‘origem racista’ (o que não é verdade). O senhor observa, no mundo anglófono, se há palavras e expressões cujos significados vêm sendo distorcidos, a ponto de serem eliminadas, reduzindo assim o vocabulário das pessoas e facilitando o controle da linguagem e do pensamento?
Ah, sim, tivemos incidentes semelhantes aqui. Um dos mais loucos foi quando uma colunista de jornal foi chamada de racista por dizer que tinha uma preocupação “chata” [“niggling”] com o casamento de Harry e Meghan. “Niggling” não tem absolutamente nada a ver com aquela palavra que começa com N [“the N-word”, referente à palavra “nigger”, termo ofensivo para os negros]. Significa apenas “um sentimento persistente de desconforto ou incômodo”. E ainda assim foi interpretado como uma ofensa racial contra Meghan — foi algo completamente descompensado. Sob a ideologia woke, a linguagem em torno da raça é severamente policiada. Não me refiro apenas a fazer cara feia para ofensas raciais — todos nós fazemos isso. Quero dizer que até mesmo a linguagem “correta” agora muda o tempo todo. Costumávamos dizer “pessoas negras”. Então tivemos que ar a dizer “Bame”, que significa “negros, asiáticos e minorias étnicas”. Daí tivemos que dizer “pessoas de cor”. Depois, “mulheres de cor”, “professores de cor”, “enfermeiros de cor”, e assim por diante. Quem consegue acompanhar isso tudo? É uma forma muito elitista de fala. A grande maioria das pessoas comuns que conheço — incluindo, desculpe meu “erradopensar”, pessoas negras — não usa os novos termos. Acha estranho e paternalista. É como “latinx”, nos Estados Unidos. As únicas pessoas que falam “latinx” são os brancos escolarizados de classe alta, não os latinos de verdade! Eles estão felizes em ser latinos.

“As pessoas dizem que a liberdade de expressão é selvagem e imprevisível e que frequentemente tem consequências desestabilizadoras. Mas a censura sempre tem consequências piores. Sempre. A censura é a parteira da intolerância”
É uma forma elitista de linguagem?
Acho as regras woke de linguagem muito eduardianas, no sentido de demonstrar que você faz parte de uma nova elite que fala corretamente, pensa corretamente, se comporta corretamente. Usar o linguajar “correto”, como “pessoas de cor”, “gênero atribuído ao nascer” ou “diferentemente eficiente” (em vez de “deficiente”) é como você sinaliza que pertence à patota. Que é membro da casta mais elevada de todas — os novos controladores do pensamento. É muito performático. Prefiro de longe a maneira como comunidades da classe trabalhadora falam. É mais crua e mais sincera. Por exemplo, elas dirão “minha amiga deu à luz uma menina”, e não “minha amiga ganhou neném a quem foi atribuído o gênero feminino”. Acho o policiamento intenso sobre o linguajar racial incrivelmente paternalista. A ideia de que pessoas negras e outras minorias étnicas requerem que as escolarizadas elites majoritariamente brancas as poupem de ofensas ou “danos” é impressionantemente paternalista. É, em si, uma forma de racismo, creio eu, já que situa os governantes da sociedade como os salvadores de grupos minoritários supostamente fracos. Reabilita a relação mestre/servo no campo da linguagem. É o racismo das baixas expectativas, em que muitos de nossos concidadãos são julgados incapazes de tomar parte na vida pública porque podem se desmanchar ao ouvir uma palavra ofensiva.
Continuarei falando ”denegrir”, ”buraco negro” e tudo que quiser. Que se lasquem esses mimizentos.
Ótimo diagnóstico. E como saímos disso?
A jumentice é global que retrocesso
Wonderful interview.
Easythink esse Brendan.
Perguntas ótimas. Parabéns, Bruno.